xmlns:og='http://ogp.me/ns#' Cantinho da Déa: Que crianças estamos criando?

quarta-feira, 4 de março de 2009

Que crianças estamos criando?


Para alguns são monstrinhos: superativos, mal-educados, incapazes de lidar com frustrações e cheios de caprichos. Para outros, uma legião de pequenos emocionalmente desamparados que, mesmo longe das ruas, sofrem um abandono silencioso dentro de casa. Cabe aos pais evitar esse erro

Texto
Cristiane Ballerini


Para José Martins Filho a mãe é essencial para a criança em seus primeiros anos de vida

O pediatra José Martins Filho viu passar por seu consultório uma verdadeira revolução social nessas últimas décadas. Embora faça questão de acentuar seu apoio às conquistas femininas, ele tem saudades do tempo em que as crianças iam às consultas levadas pelas mães. "Hoje, é comum receber bebês acompanhados apenas da empregada", lamenta. O fenômeno é tema de seu livro A Criança Terceirizada (Ed. Papirus), no qual ele avalia os prejuízos causados pela ausência dos pais nos cuidados com os filhos. Avô duas vezes, Martins lecionou por 35 anos na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde atualmente é pesquisador do Centro de Investigação em Pediatria. Já nos anos 1980, foi pioneiro no incentivo ao aleitamento materno no país, numa época em que as mamadeiras imperavam, e é dono de uma vasta produção científica, que inclui nove livros publicados.

1. - Qual é o futuro das crianças terceirizadas? É possível educar quando se tem pouco contato?
José Martins Filho: Não. Tanto que muitos pais ausentes são dominados pelos filhos de 2 ou 3 anos. Sentem uma culpa enorme pela ausência e, quando ficam junto da criança, tentam compensá-la dizendo sim a tudo. Também é freqüente o que eu chamo de estilo "geléia com pimenta". Os pais são permissivos e os pequenos começam a testar os limites. Como não há regras claras, eles extrapolam até o adulto perder o controle e mostrar seu lado pimenta. Aí, os pais explodem, gritam, ameaçam, partem para o castigo físico. Depois se arrependem e voltam à forma doce e mole. Essa gangorra emocional é sempre terrível e favorece a formação de adultos que se julgam onipotentes. Outro efeito negativo da terceirização diz respeito à colocação de limites. Avós, babás, professores, empregadas podem cuidar, mas eles não têm plena autoridade e, muitas vezes, seus valores não coincidem com os da família. Pais que amam impõem limites e ensinam a respeitar os outros desde cedo.
2. - Seu livro fala do abandono que pode acontecer dentro de casa, com crianças que aparentemente têm todos os recursos para se desenvolver bem.
José Martins Filho: De fato. É um tipo de abandono silencioso, que não sai nos jornais, mas acontece todos os dias. Um pediatra experiente percebe os sinais: os bebês se machucam e adoecem com freqüência, vão ao consultório com empregados... Outro indício são os pais que reclamam muito da criança e demonstram total impaciência. Alguns chegam a dizer que o bebê é um "chato". O problema não é o filho. São os pais, que não estão sabendo corresponder ao seu papel. Agem como se fosse possível ligar o botão da paternidade pela manhã, brincar um pouquinho, fazer um bilu-bilu e desligar. Mas não é assim. Criança pede atenção, chora, fica doente, exige e, sobretudo, precisa de afeto para se desenvolver. Quem decide ter um filho deve lembrar que, por algum tempo, não vai dar para cair na balada, esticar o chope com os amigos ou fazer hora extra todos os dias.
3. - Existe uma idéia "romantizada" sobre ter filhos?
José Martins Filho: Parece que sim. Além disso, falta encarar o fato de que nem todos nascem para ser pais. A sociedade precisa romper o tabu que faz os casais se sentirem na obrigação de ter um bebê. É melhor não ter filhos do que não se dedicar a eles com carinho e maturidade.
4. - Toda ajuda de terceiros é prejudicial?
José Martins Filho: Pelo contrário. O apoio de profissionais e pessoas da família é bem-vindo e necessário, especialmente quando se tem um bebê em casa. O que não deve acontecer é a substituição da mãe por babás e outros profissionais. Já vi muitas mulheres que, mesmo no seu tempo livre, delegam os filhos a outras pessoas. Não é de espantar que, quando sofrem uma queda ou têm um pesadelo, essas crianças vão buscar conforto no colo da babá e não no da mãe.
5. - Isso deve causar ciúmes nas mães e confusão para as crianças, não?
José Martins Filho: Sim. Quando se dão conta da profundidade do vínculo que o bebê estabeleceu com a babá, muitas mulheres até despedem a profissional. Conheço crianças que, em dois anos, já tiveram de estabelecer ligações com cinco cuidadoras diferentes... A mãe biológica fica enciumada e substitui as babás. É uma violência com o bebê. Não dá para ignorar que ser mãe implica doar tempo à criança, participar de sua vida, confortar nos momentos difíceis...
6. - Muitas mulheres passam a maior parte do tempo fora porque trabalham e seu salário é fundamental para sustentar a casa. Por que a responsabilidade com os bebês recai principalmente sobre os ombros femininos?
José Martins Filho: Não quero colocar a culpa nas mulheres, mas não dá para ignorar a importância da mãe nos primeiros anos. Para Winnicott (Donald Woods Winnicott, 1896-1971, famoso pediatra e psicanalista inglês), a capacidade de ser feliz de um ser humano pode depender de apenas uma pessoa e de um tempo. A pessoa é a mãe. O tempo é a infância - em especial, o primeiro ano. Nos primeiros três meses, o pai é importante, mas o bebê necessita da segurança e da proximidade da mãe. Só a partir dos 6 meses, ele começa a se relacionar com os outros. Sou um defensor dos direitos femininos e acho que está na hora de repensar a questão da maternidade como um direito a ser conquistado.
7. - O direito a acompanhar de perto o crescimento e a educação dos filhos, então, seria uma bandeira em tempos de pós-feminismo?
José Martins Filho: (risos) Exatamente. Cabe à sociedade encontrar formas de garantir esse direito sem obrigar as mães a abrir mão dos seus outros papéis. Isso é fundamental para termos gerações de crianças mais felizes e bem-educadas no futuro.
8. - Oficialmente, a licença-maternidade no Brasil ainda é de quatro meses... Como preservar o vínculo com o bebê na volta ao trabalho?
José Martins Filho: Aconselho a mãe a usar todos os seus direitos para ficar o maior tempo possível com o filho. Ela pode, por exemplo, unir a licença-maternidade a um mês de férias, solicitar os 15 dias adicionais de licença-amamentação e, na volta ao trabalho, negociar com o empregador um horário mais flexível ou até a possibilidade de levar o bebê junto, em um carrinho ou uma cesta, onde ele fique confortável e próximo. Profissionais liberais sempre têm a alternativa de planejar melhor a agenda e diminuir a carga de trabalho nos primeiros meses. Já vi muitas médicas e advogadas que vão trabalhar levando o filho. Nem sempre é fácil, mas vale a pena tentar.
9. - Por que está cada vez mais difícil o estabelecimento dos vínculos familiares?
José Martins Filho: Os costumes mudaram rapidamente e a sociedade atual privilegia o individualismo. Do antigo convívio em volta do rádio, as famílias passaram a se organizar ao redor da TV, todos voltados para a tela. Com o computador, as relações familiares se despersonalizam ainda mais. Conheço pais que falam com os filhos por e-mail, estando na mesma casa. A tecnologia e os seus avanços são ótimos, mas não devem substituir o contato pessoal. A supervalorização do consumo, do poder econômico e da fama sem mérito são outras distorções. A mulher é pressionada a ter como prioridade manter-se sexy, bonita e malhada. Com esses valores, por que alguém se sentiria estimulado a doar tempo de sua vida a uma criança? Outro dia, no consultório, uma mãe começou a se queixar das suas obrigações econômicas. "Preciso ganhar dinheiro para manter dois carros e os celulares. Tem o meu e o do meu filho. E as contas são altas!", ela dizia. Não sei se consegui, mas procurei abrir os olhos dessa mãe. Será que vale a pena trocar mais tempo com o filho por um celular? Garanto que o menino precisa mais da presença dela do que de um telefone... Crianças amadas e educadas com a presença sólida dos pais certamente têm mais chances de se tornarem adultos felizes e realizados no futuro.
10. - Preenchendo as ausências
José Martins Filho: Se os pais passam cada vez mais tempo longe dos filhos, quem os educa? Para os canadenses Gordon Neufeld, psicólogo especializado em desenvolvimento infantil, e o médico Gabor Maté, a influência de colegas, ícones jovens e primos vem se tornando mais determinante na formação dos pequenos do que os modelos fornecidos pelos adultos. É o que os especialistas chamam de "educação por pares" - fenômeno que enfraquece a família. Segundo os autores, uma criança só procura as referências dos pais se uma forte ligação entre eles foi estabelecida. "Para uma criança se mostrar disposta a ser educada por um adulto, é preciso que ela tenha um vínculo com ele, queira manter contato e se tornar próxima", destacam os especialistas em seu livro Pais Ocupados, Filhos Distantes - Investindo no Relacionamento (Melhoramentos). Se tudo corre bem, essa proximidade emocional com o bebê se transformará em intimidade psicológica ao longo dos anos. Mas é preciso cultivá-la. - Deixe fotos e lembranças que evoquem momentos felizes de convivência estrategicamente colocadas em quarto, sala, próximas do computador - Escreva bilhetinhos-surpresa reafirmando seu amor. Ponha-os no lanche, no meio do caderno, debaixo do travesseiro. - Coloque no berço do bebê uma peça de roupa com o seu cheiro. - Se viajar, mostre mapas e fotos de onde vai estar e ligue todo dia.

Nenhum comentário: