Autor de diversos livros sobre educação, Celso Vasconcellos diz que durante a Idade Média existiam práticas mais avançadas de avaliação
Equívoco, absurdo e lamentável são alguns dos adjetivos
usados pelo educador, coordenador pedagógico e gestor escolar Celso
Vasconcellos para designar a prática da repetência nas escolas. O
diretor do Libertad – Centro de Pesquisa, Formação e Assessoria
Pedagógica, doutor em didática pela USP e mestre em história e filosofia
da educação pela PUC-SP, ele diz que é preciso existir alegria nas
escolas, e não aquela alegria criada no humor barato, na palhaçada, mas
no sentido de crescimento da potência, de aprendizado.
"O aluno vai ficar feliz porque está aprendendo, se
desenvolvendo, sendo capaz de enfrentar melhor os conflitos na sala de
aula. Dá uma alegria muito grande quando você consegue produzir um
texto, resolver uma equação", diz o pesquisador.
O autor de diversos livros como Avaliação: Superação da Lógica Classificatória e Excludente,
surpreende a maioria dos espectadores de suas palestras ao dizer que
sim, é possível fazer uma escola do futuro com uma avaliação medieval.
Vasconcellos explica que durante a Idade Média já existiam práticas mais
avançadas de avaliação, por ciclos, que as usadas hoje.
Para o educador, avaliar os alunos sem classificá-los ou
excluí-los é fundamental para construir uma escola que foque no
essencial: a aprendizagem, o desenvolvimento humano e a alegria. Leia a
entrevista que o educador concedeu ao Porvir:
Porvir - O que é uma escola do futuro para o senhor?
Celso Vasconcellos - É aquela que garante a função social da escola, que não vem sendo cumprida historicamente. Basicamente é o aluno aprender os saberes necessários, se desenvolver como ser humano e ser feliz. Mas muitas vezes eles não aprendem nem sequer os saberes básicos. Outros aprendem, são verdadeiras máquinas de fazer exames e vestibulares, mas são topeiras humanas, pessoas que não têm visão de mundo. E é importante também a alegria crítica, porque a maioria é feliz antes da aula, no intervalo e depois da aula. Acho importante que eles tenham alegria dentro da sala de aula, não através do humor barato, da palhaçada, mas no sentido dado por Spinoza (Baruch Spinoza), quando ele diz que alegria é o crescimento da potência. O aluno vai ficar feliz porque está aprendendo, se desenvolvendo, sendo capaz de enfrentar melhor os conflitos na sala de aula, na família. Dá uma alegria muito grande quando você consegue produzir um texto, resolver uma equação matemática ou entender as relações da natureza. Para mim, a escola do futuro propicia isso para o conjunto dos seus alunos, não para apenas um ou outro.
Celso Vasconcellos - É aquela que garante a função social da escola, que não vem sendo cumprida historicamente. Basicamente é o aluno aprender os saberes necessários, se desenvolver como ser humano e ser feliz. Mas muitas vezes eles não aprendem nem sequer os saberes básicos. Outros aprendem, são verdadeiras máquinas de fazer exames e vestibulares, mas são topeiras humanas, pessoas que não têm visão de mundo. E é importante também a alegria crítica, porque a maioria é feliz antes da aula, no intervalo e depois da aula. Acho importante que eles tenham alegria dentro da sala de aula, não através do humor barato, da palhaçada, mas no sentido dado por Spinoza (Baruch Spinoza), quando ele diz que alegria é o crescimento da potência. O aluno vai ficar feliz porque está aprendendo, se desenvolvendo, sendo capaz de enfrentar melhor os conflitos na sala de aula, na família. Dá uma alegria muito grande quando você consegue produzir um texto, resolver uma equação matemática ou entender as relações da natureza. Para mim, a escola do futuro propicia isso para o conjunto dos seus alunos, não para apenas um ou outro.
Porvir - E o que é uma avaliação medieval?
Celso Vasconcellos - De modo geral, as pessoas têm uma conotação negativa da Idade Média, mas eu costumo brincar que, em alguns casos, quando falamos que uma escola é medieval, estamos ofendendo os medievais, porque há práticas da época mais interessantes do que as aplicadas hoje. Tomo como referência o período que vai do século 11, quando ocorre a retomada das cidades e surgem as universidades, até o 16, em que existia uma organização da escola elementar muito ligada à universidade. Era possível ir da gramática ao doutorado sem nunca repetir de ano. Existia um ciclo inicial, para dominar os instrumentos da leitura, depois vinha o ciclo intermediário, das artes liberais, para formar o homem livre em contraponto ao homem manual. E o terceiro ciclo dava conta da teologia, medicina e direito, as áreas nas quais era possível se tornar mestre ou doutor. Existia exame, o aluno até podia ser reprovado, mas não repetia. Em determinado momento, o aluno e o professor marcavam o exame e, se o estudante fosse reprovado, continuava frequentando as aulas até que ele e o orientador considerassem que era possível fazer a prova de novo. Mas não tinha um programa fixo, não tinha uma seriação.
Celso Vasconcellos - De modo geral, as pessoas têm uma conotação negativa da Idade Média, mas eu costumo brincar que, em alguns casos, quando falamos que uma escola é medieval, estamos ofendendo os medievais, porque há práticas da época mais interessantes do que as aplicadas hoje. Tomo como referência o período que vai do século 11, quando ocorre a retomada das cidades e surgem as universidades, até o 16, em que existia uma organização da escola elementar muito ligada à universidade. Era possível ir da gramática ao doutorado sem nunca repetir de ano. Existia um ciclo inicial, para dominar os instrumentos da leitura, depois vinha o ciclo intermediário, das artes liberais, para formar o homem livre em contraponto ao homem manual. E o terceiro ciclo dava conta da teologia, medicina e direito, as áreas nas quais era possível se tornar mestre ou doutor. Existia exame, o aluno até podia ser reprovado, mas não repetia. Em determinado momento, o aluno e o professor marcavam o exame e, se o estudante fosse reprovado, continuava frequentando as aulas até que ele e o orientador considerassem que era possível fazer a prova de novo. Mas não tinha um programa fixo, não tinha uma seriação.
O poder Executivo falha, o Judiciário, os meios de
comunicação, os partidos, os sindicatos, o diretor, a família, o
professor, a merendeira, o editor de livro didático falham e quem paga
por isso? Quem é reprovado? O aluno. Como você pode fazer isso com uma
criança de 7, 8, 9 ou 10 anos? É um grande absurdo.
Porvir - Mas nas redes em que foram
aplicados ciclos de ensino existe uma percepção de que o sistema não
funciona, que os alunos seguem em frente sem aprender…
Celso Vasconcellos - Isso é senso comum. E aliás, o senso comum é o que mais pauta as práticas escolares. Se você perguntar para um professor por que a aula tem que ter 50 minutos, ele não apresenta um fundamento epistemológico, psicológico e filosófico para a questão.
Celso Vasconcellos - Isso é senso comum. E aliás, o senso comum é o que mais pauta as práticas escolares. Se você perguntar para um professor por que a aula tem que ter 50 minutos, ele não apresenta um fundamento epistemológico, psicológico e filosófico para a questão.
Por exemplo, as pesquisas mostram que o rendimento em
sistemas seriados e não seriados é praticamente idêntico, o que eu acho
lamentável. Para mim, os sistemas que adotam ciclos deveriam ter um
rendimento muito melhor. O ciclo, quando bem compreendido, é uma fórmula
muito mais poderosa, que respeita o ser humano. Era de se esperar até
um aumento do rendimento, o que não ocorre pela falta de convicção do
professor no sistema. Ele não acredita, passa essa descrença para os
alunos e para a família e entende que o sistema quer apenas produzir
números. Quando pergunto por que todos falham e só o aluno paga é um
silêncio geral. Ninguém responde. Não tem uma resposta, é uma profunda
injustiça.
Com a mesma ênfase que critico a reprovação, eu critico a
aprovação. Você pode enganar o aluno reprovando ou aprovando. Quando
você não engana o aluno? Quando você ensina. Ele não vai para escola
para ser aprovado, mas para ser ensinado, para aprender de fato.
Porvir - Mas o senhor não defende que não se faça avaliação, certo? Como ela deveria ser?
Celso Vasconcellos - Não reprovar serve justamente para que se possa voltar ao essencial, ou seja, à aprendizagem, ao desenvolvimento humano e à alegria. Já que não estou mais preocupado em classificar o aluno, eu tenho que ensiná-lo. Avaliação é absolutamente fundamental, qualquer processo humano tem que ser acompanhado, o que critico é a avaliação classificatória e excludente.
Celso Vasconcellos - Não reprovar serve justamente para que se possa voltar ao essencial, ou seja, à aprendizagem, ao desenvolvimento humano e à alegria. Já que não estou mais preocupado em classificar o aluno, eu tenho que ensiná-lo. Avaliação é absolutamente fundamental, qualquer processo humano tem que ser acompanhado, o que critico é a avaliação classificatória e excludente.
Existem práticas muito simples, como a de pedir uma
pequena síntese sobre o assunto que está sendo desenvolvido ao fim de
uma aula. É só pedir para os alunos colocarem no papel o que entenderam e
não entenderam. Assim, faço uma avaliação significativa, em cima do ato
de aprendizagem. Em língua portuguesa ou história e geografia, os
meninos podem produzir textos que o professor analisa, aponta problemas,
conversa, então o aluno reelabora até chegar a um nível satisfatório.
Assim ele vai aprender, não apenas passar. Gosto muito do que o Werneck
[Hamilton Werneck] fala: “Se escola boa é a que reprova, hospital bom é o
que mata”. Mas tem professor que se vangloria de reprovar alunos.
Porvir - E como é possível melhorar a
formação do professor e ensiná-lo a fazer um novo tipo de avaliação e
construir uma escola que ensine, desenvolva os alunos e faça eles
felizes?
Celso Vasconcellos - Um elemento básico é articular a formação do professor com estágio. O meu curso de pedagogia dos sonhos teria oito anos em tempo integral com estágio desde o primeiro ano remunerado. Ou seja, ele estaria estudando, indo para a prática, voltando e refletindo sobre ela. Por exemplo, hoje um professor que faz licenciatura em matemática está habilitado para dar aula na segunda fase do ensino fundamental e no ensino médio. Quando ele vai dar aula de conjuntos, usa a matéria que teve na quinta série, porque esse conteúdo não é trabalhado na licenciatura. Ele só vê a alta matemática, mas a que vai ensinar, não vai rever.
Celso Vasconcellos - Um elemento básico é articular a formação do professor com estágio. O meu curso de pedagogia dos sonhos teria oito anos em tempo integral com estágio desde o primeiro ano remunerado. Ou seja, ele estaria estudando, indo para a prática, voltando e refletindo sobre ela. Por exemplo, hoje um professor que faz licenciatura em matemática está habilitado para dar aula na segunda fase do ensino fundamental e no ensino médio. Quando ele vai dar aula de conjuntos, usa a matéria que teve na quinta série, porque esse conteúdo não é trabalhado na licenciatura. Ele só vê a alta matemática, mas a que vai ensinar, não vai rever.
Na formação atual, ele vai ter só algumas aulas de
metodologia e didática, mas desvinculadas do conteúdo. Aí tem outro
problema, que está relacionado à falta de interesse na profissão, que se
tornou pouco valorizada. A maioria nem liga para a pequena carga
didática que recebe na licenciatura, porque não quer ser professor, quer
ser pesquisador na IBM. Mas quando se forma, não consegue ser
pesquisador e vira professor de matemática. Mesmo o pouco que teve, não
aproveitou. É um problema gravíssimo.
Porvir - E o que os governos deveriam fazer para que todo o sistema de ensino mude?
Celso Vasconcellos - O primeiro papel do governo seria o de não atrapalhar, dar voto de confiança às escolas que estão querendo fazer. Nesse contrato, a escola se comprometeria a obter determinados resultados, mas teria liberdade na organização pedagógica.
Celso Vasconcellos - O primeiro papel do governo seria o de não atrapalhar, dar voto de confiança às escolas que estão querendo fazer. Nesse contrato, a escola se comprometeria a obter determinados resultados, mas teria liberdade na organização pedagógica.
Atualmente, um exemplo clássico de tentativa de mudança
ocorre no ensino médio. Há propostas muito interessantes, de buscar
princípios de fundamentação, articulação, mas quando você vê a grade
curricular é a mesma de 200 anos atrás. É desanimador. No frigir dos
ovos, o aluno tem aula de português, matemática etc., embora o discurso
seja o de transdisciplinaridade, articulação com trabalho, do princípio
da identidade, da participação e do protagonismo. Que raio de
protagonismo é esse que o menino vai do primeiro ao terceiro ano sem
fazer uma opção curricular? A coisa da burocracia pesa muito.
Depois, há as grandes questões importantes ao professor:
a remuneração, formação, as condições de trabalho, que precisam ser
revistas. Em muitas escolas, se vive um verdadeiro inferno para
trabalhar.
Porvir - E é possível mudar as
avaliações dentro da escola sem mudar os exames classificatórios, como o
vestibular e Enem, que os alunos se submetem depois?
Celso Vasconcellos - Há uma grande diferença entre o vestibular e o Enem. A concepção do Enem, pelo menos em princípio – e a gente tem que lutar para que o Enem seja fiel aos seus princípios – é exigir que o aluno aplique o conhecimento, prove que pode estabelecer relações. O Enem dá a fórmula, dá os dados, não exige a memorização, dá a tabela periódica. Ele exige que você saiba pensar. Eu acho que o Enem abre uma janela de oportunidade interessante, dá uma certa liberdade para reorganizar a escola.
Celso Vasconcellos - Há uma grande diferença entre o vestibular e o Enem. A concepção do Enem, pelo menos em princípio – e a gente tem que lutar para que o Enem seja fiel aos seus princípios – é exigir que o aluno aplique o conhecimento, prove que pode estabelecer relações. O Enem dá a fórmula, dá os dados, não exige a memorização, dá a tabela periódica. Ele exige que você saiba pensar. Eu acho que o Enem abre uma janela de oportunidade interessante, dá uma certa liberdade para reorganizar a escola.
Você querer comparar o Brasil com a Finlândia, onde há
um investimento maior no aluno e uma desigualdade social muito menor, é
falho. Têm fatores que devem ser considerados.
Porvir - E as avaliações externas, como o Pisa e o Ideb, ajudam ou atrapalham?
Celso Vasconcellos - São interessantes, no sentido de serem indicadores, mas focam só em português e matemática, o que estreita a concepção de formação. Além disso, seria necessário articular com o Pisa, por exemplo, indicadores de desigualdade social. Você querer comparar o Brasil com a Finlândia, onde há um investimento maior no aluno e uma desigualdade social muito menor, é falho. Têm fatores que devem ser considerados.
Celso Vasconcellos - São interessantes, no sentido de serem indicadores, mas focam só em português e matemática, o que estreita a concepção de formação. Além disso, seria necessário articular com o Pisa, por exemplo, indicadores de desigualdade social. Você querer comparar o Brasil com a Finlândia, onde há um investimento maior no aluno e uma desigualdade social muito menor, é falho. Têm fatores que devem ser considerados.
Avaliações externas têm uma função, mas se eu fosse
ministro da Educação pararia com os testes nacionais por uns quatro
anos. Vamos parar de fazer todos esses exames, já temos dados
suficientes, vamos investir no que tem que ser feito. Em função dessas
testagens, a liberdade curricular da escola é comprometida porque ela
precisa se preparar para esses exames. Com a melhor das boas intenções, a
escola funciona para o exame e não o exame para a escola. Inverte a
lógica. Não sou contra os testes, mas têm que ser dosados.