A LDB e o Pedagógico
Geralmente, as leis tratam de assuntos técnicos, administrativos e burocráticos. É difícil imaginar-se uma "lei pedagógica", até porque pedagogia combina mais com princípios do que com leis. No entanto, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n° 9.394/96) tem um forte componente pedagógico, se considerarmos pedagogia enquanto ciência da instrução e da educação e não método. Nesse sentido, há várias previsões legais que se dirigem ao administrativo, mas que implicam, obrigatoriamente, o pedagógico.
A LDB já se inicia afirmando que a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem em vários lugares, um dos quais é a escola (art. 1°).
Art. 1º - A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais.
Aí está uma clara opção pela formação, prevalecendo esta sobre a informação e que os professores não podem desconhecer nos seus planejamentos. Mais à frente (art. 24, V), quando a lei vai tratar da verificação do rendimento escolar, afirma ela ainda que os aspectos qualitativos devem prevalecer sobre os quantitativos; ou seja, quantidade é importante, mas qualidade é mais importante.
Art. 24 - A educação básica, nos níveis fundamental e médio, será organizada de acordo com as seguintes regras comuns:V- a verificação do rendimento escolar observará os seguintes critérios:a) avaliação contínua e cumulativa do desempenho do aluno, com prevalência dos aspectos qualitativos sobre os quantitativos e dos resultados ao longo do período sobre os de eventuais provas finais;
Como a LDB disciplina a educação escolar (uma das modalidades de educação), prevê ela que essa educação se desenvolve predominantemente por meio do ensino, em instituições próprias. Surge aí a figura do professor, da escola e da aula, já que "ensino em instituições próprias" é diferente de aprendizagem ou pesquisa através de multimeios.Como trabalhar os conteúdos que "serão ensinados" aos alunos? A LDB deixa claro que deverá existir pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, assim como liberdade de ensinar (art. 3°),
Art. 3º - O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:III- pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas;
mas, de qualquer forma, a educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social (art. 1°, § 2°),
§2º - A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e a prática social.
com respeito à liberdade e apreço à tolerância, e com garantia de padrão de qualidade (art. 2°).
IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância;IX - garantia de padrão de qualidade;
Aprovação e reprovação podem ser vistos como aspectos meramente administrativos ou burocráticos de uma escola: preenchidos certos requisitos, os alunos devem ser aprovados, não preenchidos, serão reprovados. No entanto, a LDB deixa claro que o acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística dar-se-á segundo a capacidade de cada um (art. 4°, V);Art. 4º - O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de:V- acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um;
na mesma linha, a classificação por promoção dar-se-á para os alunos que cursarem com aproveitamento a série ou fase anterior na própria escola (art. 24, II, a).
a) por promoção, para alunos que cursaram, com aproveitamento, a série ou fase anterior, na própria escola;
Portanto, a LDB privilegia a capacidade, mesmo em detrimento da formalidade, e proíbe a promoção dos alunos que não tiveram aproveitamento na série ou fase anterior; em resumo, a LDB descarta a promoção automática. Nesta mesma "linha dura" (art. 24, VI),
VI - o controle de freqüência fica a cargo da escola, conforme o disposto no seu regimento e nas normas do respectivo sistema de ensino, exigida a freqüência mínima de setenta e cinco por cento do total de horas letivas para aprovação;
a LDB não permite que sejam aprovados os alunos infreqüentes (com menos de 75% de freqüência global), mesmo que eles tenham aproveitamento e capacidade, o que é uma aparente contradição.Pela formalidade, chega-se ao título de "doutor", vencendo-se as etapas da graduação, pós-graduação, créditos e tese de mestrado, créditos e tese de doutorado. Pela LDB (art. 66),
Art. 66 - A preparação para o exercício do magistério superior far-se-á em nível de pós-graduação, prioritariamente em programas de mestrado e doutorado.
no entanto, o notório saber poderá suprir a exigência de título acadêmico, ou seja, passa-se de calouro a doutor, em uma semana, desde que se tenha capacidade e, ao menos em tese. Portanto, os planos de trabalho nos cursos voltados ao magistério superior têm que prever essa hipótese.Ao tratar da organização da educação básica (art. 23), a LDB atinge o ápice da sua flexibilidade, sugerindo cinco formas diferentes de organização: séries anuais, períodos semestrais, ciclos, alternância regular de períodos de estudo, e grupos não seriados.
Art. 23 - A educação básica poderá organizar-se em séries anuais, períodos semestrais, ciclos, alternância regular de períodos de estudos, grupos não-seriados, com base na idade, na competência e em outros critérios, ou por forma diversa de organização, sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar.
No entanto, se nenhuma dessas formas interessar à escola, e ao sistema, a lei deixa claro que pode haver uma "forma diversa de organização". Portanto, "vale tudo", desde que se atenda o interesse do processo de aprendizagem, ou seja, o objetivo a ser atingido é a aprendizagem, e é em função desse objetivo que se deve definir os meios, estratégias e formas de organização. Nesse caso, há uma clara prevalência do pedagógico sobre o administrativo.O professor pode usar o método que quiser, nas suas aulas (art. 3°), e a escola pode ter a organização que julgar melhor, na educação básica (art. 23), desde que, tanto um como a outra levem à aprendizagem dos alunos. É o administrativo vinculando o pedagógico.Ao tratar de uma parte aparentemente burocrática, que é a reclassificação dos alunos (art. 23, § 1° e 24, II, c), a LDB toca incisivamente na questão pedagógica.
§1º - A escola poderá reclassificar os alunos, inclusive quando se tratar de transferências entre estabelecimentos situados no País e no exterior, tendo como base as normas curriculares gerais.
c) independentemente de escolarização anterior, mediante avaliação feita pela escola, que defina o grau de desenvolvimento e experiência do candidato e permita sua inscrição na série ou etapa adequada, conforme regulamentação do respectivo sistema de ensino;
A reclassificação, por analogia com, e por ser uma nova, classificação, visa colocar o aluno na série ou etapa mais adequada ao seu desenvolvimento e experiência. Coerente com o princípio da valorização da capacidade (art. 4°), a reclassificação é o mecanismo que serve para colocar o aluno na série mais adequada ao seu desenvolvimento, independentemente da sua idade, podendo ser essa uma série mais avançada, ou uma etapa mais recuada. O regimento escolar tem de prever essa situação e esse instituto (a reclassificação).Ao tratar dos currículos do ensino fundamental (art. 26) e médio (art. 36), a LDB instituiu componentes obrigatórios, o que é uma medida administrativa; ao mesmo tempo, porém, diz como alguns componentes devem ser tratados, o que é essencialmente pedagógico. Nessa linha, a educação física deve estar integrada à proposta pedagógica da escola; Filosofia e Sociologia, por sua vez, são tidas como temas transversais e não necessariamente como conteúdos lineares.
Art. 36 - O currículo do ensino médio observará o disposto na Seção I deste Capítulo e as seguintes diretrizes:III - domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania.
O mesmo ocorre com o componente "História e Cultura Afro-Brasileira", instituído pela Lei n° 10.639/03, cujos conteúdos "serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras". Visivelmente, esse componente é um tema transversal, e que dessa forma deve ser tratado no planejamento escolar e no projeto pedagógico.Um detalhe curioso na LDB, tanto do ponto de vista administrativo quanto do pedagógico, é a questão dos exames finais. Depreende-se da sua leitura que a LDB não gosta de exames finais; mas também não teve coragem de vetá-los. Por isso, num primeiro momento (art. 24, I) a Lei diz que o tempo reservado aos exames finais, quando houver, será excluído da carga horária mínima anual.
I - a carga horária mínima anual será de oitocentas horas, distribuídas por um mínimo de duzentos dias de efetivo trabalho escolar, excluído o tempo reservado aos exames finais, quando houver;
Num segundo momento, (art. 24, V, a), a LDB diz que os resultados obtidos ao longo do período devem prevalecer sobre os de eventuais provas finais.
a) avaliação contínua e cumulativa do desempenho do aluno, com prevalência dos aspectos qualitativos sobre os quantitativos e dos resultados ao longo do período sobre os de eventuais provas finais;
A conseqüência direta desses dois dispositivos deverá ser a não adoção dos exames finais, por questões administrativas (não alongar o ano letivo) e também pedagógicas (as avaliações contínuas e cumulativas são melhores que as finais).Questão difícil de ser equacionada pedagogicamente é a do ensino religioso (art. 33), uma vez que constitui disciplina obrigatória dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, podendo ser tratada como conteúdo linear ou tema transversal, mas, ao mesmo tempo, a lei proíbe o proselitismo religioso. Nas aulas de ensino religioso é proibido defender, propagar ou propagandear uma determinada religião. Em resumo, e na prática, nas aulas de religião é proibido falar de religião, o que é, no mínimo, contraditório e incompatível.
Art. 33 - O ensino religioso, de matrícula facultativa, constitui disciplinas dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, sendo oferecido de acordo com as preferências manifestadas pelos alunos ou por seus representantes (vedadas quaisquer formas de proselitismo).
O ponto mais importante da LDB, pedagogicamente falando, é, sem dúvida, a previsão da existência de uma "proposta pedagógica" que irá nortear o processo pedagógico das escolas e de todos os sistemas de ensino. A proposta pedagógica, elaborada e executada pela própria escola, o que dá a dimensão da sua autonomia, é que vai orientar todo o projeto administrativo e burocrático da escola, além do pedagógico, obviamente. Dessa forma, a proposta pedagógica vai dar origem ao regimento escolar, que é um verdadeiro estatuto da escola; vai subsidiar o plano de gestão, e embasar os planos de trabalho, de curso e de aula da unidade escolar. A LDB, ao prever que as escolas vão se organizar de acordo com as suas propostas pedagógicas e as normas do respectivo sistema de ensino, fez um vínculo estreito entre o administrativo e o pedagógico, deixando claro, ainda, que este deve prevalecer sobre aquele.
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